Desta vez um texto sobre um artista português
Ângelo de Sousa
Origem
Considerado como artista Vanguardista, Ângelo de Sousa é visto por muitos como o introdutor do Minimalismo em Portugal, por outros, como tendo-o explorado de uma forma radical. No entanto, ao ser questionado se sentia afinidades com o Minimalismo, Ângelo de Sousa, respondeu negativamente, caracterizando-se a ele próprio talvez como “um expressionista sublimado”. Ângelo de Sousa considerou portanto não ser necessário teorizar acerca da sua obra. O artista afirma: “Não tenho nenhum credo perante o qual me sinta obrigado a responder. À partida não tenho que responder a nenhum postulado.” Desta forma, o que talvez melhor defina o seu trabalho artístico seja o seu carácter experimentalista, o de um artista que está sempre à procura de algo novo para explorar, sendo que a sua obra permanece num limbo entre o Modernismo e o Pós-Modernismo.
Nascido em Lourenço Marques, Moçambique, decorria o ano de 1938, aos 17 anos veio viver para o Porto onde estudou na Escola Superior de Belas Artes do Porto, no curso de pintura, sendo que depois de terminar os estudos foi convidado a integrar o corpo docente da escola. Em 1963 tornou-se assistente da escola. Expôs publicamente pela primeira vez em 1959, na Galeria Divulgação no Porto, juntamente com Almada Negreiros. O interesse e a intenção da exposição eram o de mostrar o trabalho de um artista consagrado com o de um jovem principiante. Seguiram-se várias outras exposições em várias galerias. Em 1963 foi um dos fundadores da Cooperativa Árvore. Entre 1967 e 1968 viveu em Londres enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e do British Council, frequentando a Slade School of Art e a Saint Martin`s School of Fine Art. Foi por essa altura que foi fundador do grupo “Os Quatro Vintes” juntamente com mais três colegas que, tal como o artista alcançaram a classificação máxima na Licenciatura, tendo como principal objectivo a divulgação dos seus trabalhos em exposições colectivas. Em 1995, tornou-se o primeiro professor catedrático da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Aposentou-se em 2000.
As suas obras estão expostas em vários museus de Arte Contemporânea. Durante a sua vida o artista participou em inúmeras exposições individuais e colectivas em Portugal e ainda em inúmeras exposições colectivas de Arte Portuguesa em países estrangeiros. Destacam-se a XIII Bienal de S.Paulo em 1975, onde foi premiado, a Bienal de Veneza em 1978 e a III Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, onde recebeu o Prémio de Pintura. Em 2007 recebeu o primeiro prémio Gulbenkian na categoria Arte. Editou ainda alguns livros tais como “Árvores, quarenta e oito desenhos A5”, “75 Desenhos” e “Pintores 19 caras”. Nos últimos anos, representou Portugal juntamente com o arquitecto Eduardo Souto Moura na XI Mostra Internacional de Arquitectura em Veneza, em 2008 e em 2010 teve o privilégio de ver estrear o filme “Ângelo de Sousa – Tudo o que sou capaz” do realizador e encenador Jorge da Silva Melo.
Ângelo de Sousa faleceu a 29 de Março de 2011, na sua casa no Porto, aos 73 anos, após neoplasia prolongada. De si, resta a sua imensa e intensa obra, sobretudo desenhos, e a lembrança de uma pessoa afável, irreverente, extrovertida e generosa.
Da sua obra Ângelo de Sousa deixou trabalhos que vão desde a pintura à escultura, passando pela fotografia, o filme, o vídeo, a cenografia, as instalações e é claro pelo desenho. E é precisamente o desenho que ocupa o lugar primordial na obra de Ângelo de Sousa, e é ele a origem do seu trabalho. Durante toda a sua vida Ângelo de Sousa dedicou-se sobretudo a desenhar. Actualmente tinha entre 10 a 12 mil desenhos, entre os outros tantos que deu, vendeu ou rasgou por considerar que eram tentativas frustradas. E para o artista os desenhos eram isso mesmo, tentativas, experiências, a origem de algo que se pode vir a iniciar, tal como o próprio artista cita “foram feitos com o mínimo de recursos, só a preto e branco exclusivamente com a ideia de serem embriões para eventual desenvolvimento”.
Por este motivo uma boa parte dos seus desenhos são a preto, sobre um fundo branco. Afirma “portanto, coibi-me de criar texturas ou acidentes, de entrar pela cor, qualquer coisa que fosse. Quer dizer, são manchas pretas, riscos pretos. Preto e Branco. O branco da superfície, o preto da tinta-da-china, a marcador, o que fosse. Estes desenhos estariam ali para eventualmente, servirem de trampolim para outro tipo de trabalho, seja escultura, sejam outros desenhos maiores, seja pintura.” O artista declarou que só num ano desenhou cerca de 2000 desenhos, numa tarde era capaz de fazer quarenta, outras vezes não fazia nada e passavam-se longos meses sem desenhar, outras ocasiões desenhava compulsivamente. Lembrando o comportamento descrito por Baudelaire no seu livro “Um pintor da vida moderna” quando descreve alguns aspectos do artista moderno “Agora, na hora em que os outros dormem, estará debruçado sobre a mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que pousava à pouco sobre as coisas, aplicando-se com o lápis, as suas penas, o seu pincel, fazendo pingar a água do copo até ao tecto, limpando a caneta à camisa, apressado, violento, activo, como se receasse que as imagens lhe escapem, discutindo mesmo a sós, aos encontrões consigo mesmo. E as coisas renascem sobre o papel, naturais e mais que naturais, belas e mais que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor”
E Ângelo de Sousa guardou estes desenhos meticulosamente, quase religiosamente, em grandes gavetões de um grande móvel. Todos devidamente organizados por datas, carimbados cada um com o seu número para ficarem na sua ordem devida e depois guardados em micas. E ali permaneciam armazenados, à espera que o artista os chamasse de volta à vida, à sua obra artística, para serem de novo explorados, experimentados. “Prepara assim vinte desenhos ao mesmo tempo com uma impetuosidade e uma alegria encantadoras, que o divertem a si mesmo, os esboços acumulam-se e sobrepõem-se, empilhando-se às dezenas, centenas, aos milhares. De tempos em tempos, percorre-os, folheia-os, examina-os e escolhe então alguns deles, para lhe aumentar mais ou menos a intensidade, para carregar as sombras e iluminar progressivamente as luzes.”
Sendo a origem, os seus desenhos eram o ponto de partida, um esboço, uma matriz mínima de uma ideia plástica, mas também contrariamente serviam de ponto de chegada, de refúgio quando a experiência atingia uma densidade que ameaçava a destruição da obra. E o artista não se importava de tornar atrás no seu trabalho, de voltar a experimentar, de voltar à origem, de tornar a explorar o que já tinha sido feito, da permanente repetição até encontrar a
fórmula certa, de tecer a obra num tempo que se repete, de a mastigar, ultrapassando assim os obstáculos. Para Ângelo de Sousa, tal como para Baudelaire “A arte é pois, (…), um produto da experiência, de um modo de ser e de estar no mundo que se torna partilhável através da obra.”
O artista fez ainda outro tipo de desenhos, aos quais chamou de auto-suficientes, que considerou terem uma intenção diferente da anterior. Eram desenhos deste tipo que eram apresentados ao público, sendo que os outros permaneciam na penumbra. Nestes, Ângelo de Sousa continuou a utilizar o preto, mas também a cor.
“Nesse caso, temos uma superfície branca, temos qualquer coisa que faz riscos ou que faz manchas, seja a cor, seja a preto e branco, seja a lápis, seja mole, seja duro, seja líquido, e normalmente o processo é: temos uma folha à frente, temos um instrumento qualquer que produz manchas ou riscos, que de qualquer maneira altera a superfície do papel.” Para o artista o importante não era a forma de fazer, mas sim o fazer, a experiência, a riqueza que poderia tirar daí era mais importante que a técnica, por isso o material empregue não importava, mas sim o resultado final. Neste ponto Ângelo de Sousa entra em ruptura com o Modernismo privilegiando a experiência do fazer ao invés da forma do fazer. “O Modernismo era demasiado local e materialista, preocupado com a forma, a superfície, o pigmento, e o aspecto que definia a pureza da pintura” . O Pós-modernismo “…é um período de tranquila e perfeita liberdade” , “…não existe nenhuma estaca da história. Tudo é permitido.”
Desta forma, nos seus desenhos Ângelo de Sousa permite-se a representações tão fugidias da representação modernista, tais como flores, folhas ou árvores, sendo que estas últimas tiveram um papel importante dentro da sua obra, que pode ser considerada em grande parte como uma proliferação rizomática. Árvores representadas sem copas, vão-se ligando umas às outras nos seus desenhos, vão-se transformando e criando novas formas, influenciando inevitavelmente também a sua pintura e escultura. Para Ângelo esta série de desenhos “teria uma carga expressiva, teria que ver com a “árvore enquanto símbolo. Tinha uma mensagem contínua, era como se fossem capítulos de um livro, uma espécie de diário.”
A paleta de cores usada por Ângelo de Sousa é muito reduzida. A grande quantidade de trabalho era um factor que estabelecia uma ligação com a gestão do trabalho em si, ligada à impulsividade do fazer, à seriação, à rapidez de execução, à experimentação. Por esses motivos o artista foi apostando cada vez mais na simplificação do seu trabalho e dos meios que o envolviam. E um dos aspectos a que Ângelo de Sousa mais se referia para justificar essa economia de meios era o da redução cromática às três cores primárias e ao preto, “uma economia de meios: folhas A5, lápis de aguarela (amarelo, azul e vermelho) e tinta-da-china o máximo que se consegue levar para uma reunião sem ofender os presentes…Essa comodidade transforma-se em regra moral: “ fazer tudo com as três corzinhas” . “E os artistas libertos do fado da história, ficaram livres para fazer arte da forma que desejassem, para os propósitos que desejassem ou para nenhuns propósitos.”
Sendo assim, acabamos por encontrar essa condição moral não só nos seus desenhos como também na sua pintura, muitas vezes monocromática, em que o artista explora através de sucessivas camadas jogos de claro-escuro, numa busca intensa pela intensidade da cor e daquilo que ela lhe poderá oferecer.
“As gamas dos tons e a harmonia geral são estritamente observadas, com um génio que advém mais do instinto que do estudo.”
Nas suas pinturas, tal como nos seus desenhos, o percurso e destino das linhas é fundamental, são a sua personagem principal. Construídos em diferentes lugares de suporte, esses percursos formam um vocabulário de formas ao nosso alcance, em que a geometria é um agente estruturante em grande parte deles, mas sempre sujeita à sua plasticidade. Encontramos estes percursos de linhas não só nas suas pinturas como também nas suas esculturas. “Em muitas esculturas com tiras de aço faz surgir o redondo na severidade das linhas, as tiras desfiam-se, recurvam-se criando vértices, cruzando feixes e faixas, afuniladas ou travadas em junções de ferro.” E encontramos estes percursos geometrizados também nos seus trabalhos fotográficos, mostrando uma grande coerência em todo o seu trabalho apesar da sua diversidade tão grande.
Na escultura encontramos também uma predominância de cores semelhante à das pinturas e desenhos de Ângelo de Sousa.
Podemos também encontrar esta procura da cor e da luz nos seus trabalhos fotográficos e audiovisuais. “O prazer que o olho do artista recebe provém, ao que parece, da série de figuras geométricas, que este objecto, por si só tão complicado (…), engendra sucessivamente e rapidamente no espaço.”
Para o artista existe ainda outro factor importante que o impulsiona a criar. Outra origem do seu trabalho, “o acaso”, a experiência de algo que acontece sem ser planeado. Ângelo de Sousa considera que o acaso pode ser um risco, um percurso arriscado que vale a pena percorrer, sob a pena de que o final possa ser bom ou menos bom. É o lado experimental da obra de arte e o acaso é o seu impulsionador. Baudelaire refere-se ao acaso desta forma: “O shock é a condição da experiência moderna, a arte que a expressa deve ser em si mesma chocante, e a vida do artista o seu balão de ensaio.”
Resultado de um destes acasos foi o trabalho fotográfico que acompanhou o artista na Bienal de Veneza em 1978, e que foi depois exposto em Milão em 1981, mais tarde em Serralves em 1993 e no Centro Cultural de Belém em 1994.
Ângelo de Sousa explica este acaso: “Em 1975 tive oportunidade de comprar uma lente para macro-fotografia. Como já tinha alguma experiência com esse tipo de fotografia, entretive-me a fazer alguns slides. Mesmo à mão, tinha um modelo dócil e disponível a minha mão esquerda, a direita accionava a máquina fotográfica.” Apesar do acaso, podemos continuar a encontrar nestas fotos os mesmos contornos presentes na sua obra, os percursos das linhas, a sua geometrização, a procura da luz, da cor, do claro-escuro, da experiência, do novo, do fugidio que passa despercebido diariamente diante dos nossos olhos, demonstrando de novo uma clara coerência no seu trabalho apesar da diversidade dos meios técnicos e de suporte.
Como conclusão, seria difícil falar apenas de três obras de Ângelo de Sousa individualmente, já que o artista tem um trabalho tão vasto e todas elas se vão encadeando de uma forma ou de outra, umas nas outras. Portanto tomei a liberdade de falar dos traços que lhes são característicos e comuns, a cor, as linhas e o acaso, tomando as imagens de algumas delas para exemplificar os textos.
Conceição Lourenço
Fontes na Web:
http://sigarra.up/up/web_base.gera_pagina?P_pagina=1000643
Universidade do Porto
http://www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=255172
A Bola
http://pt.wikipedia.org/wiki/%c3%82ngelo_de_sousa
Wikipedia
Bibliografia consultada:
João Pinharanda, Coleção Entender a Pintura, Arte Ibérica
Ângelo de Sousa, Fotografia, Galeria Quadrado Azul, Janeiro 2000
CAMJAP, Transcrições e Orquestrações, Fundação Calouste Gulbenkian
Leonor Nazaré, Ângelo de Sousa, Editorial Caminho
Charles de Baudelaire, O pintor da vida moderna, Vega Editora
Arthur Danto, After the End of Art: Comtemporary and the Pale of History, 1996,
texto Modern, Postmodern, and Comtemporary
Excertos do filme “Tudo o que sou capaz”
Encenador e Realizador Jorge da Silva Melo
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